Frase do dia

sábado, 31 de outubro de 2009

O Navio Negreiro, Tragédia no Mar (VI)



Castro Alves

Existe um povo que a bandeira empresta
Pr'a cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
...Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!


Este poema foi publicado no livro "A cachoeira de Paulo Afonso: poema original brasileiro", em 1876.



Extraído do livro "Castro Alves - Obra completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1960, organização e notas de Eugênio Gomes.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O nascimento da crônica, Machado de Assis

                 Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.

               Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
              Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
                Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
               Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.
               Não afirmo sem prova.
               Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
               Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?



O texto acima foi publicado no livro "Crônicas Escolhidas”, Editora Ática – São Paulo, 1994, pág. 13, e extraído do livro "As Cem Melhores Crônicas Brasileiras", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2007, pág. 27, organização e introdução de Joaquim Ferreira dos Santos.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

De cara lavada - 177

Martha Medeiros
hoje me desfiz dos meus bens
vendi o sofá cujo tecido desenhei
e a mesa de jantar onde fizemos planos

o quadro que fica atrás do bar
rifei junto com algumas quinquilharias
da época em que nos juntamos

a tevê e o aparelho de som
foram adquiridos pela vizinha
testemunha do quanto erramos

a cama doei para um asilo
sem olhar pra trás e lembrar
do que ali inventamos

aquele cinzeiro de cobre
foi de brinde com os cristais
e as plantas que não regamos

coube tudo num caminhão de mudança
até a dor que não soubemos curar
mas que um dia vamos

             Martha Medeiros (1961) é gaúcha de Porto Alegre, onde reside desde que nasceu. Fez sua carreira profissional na área de Propaganda e Publicidade, tenho trabalhado como redatora e diretora de criação em vária agências daquela cidade. Em 1993, a literatura fez com que a autora, que nessa ocasião já tinha publicado três livros, deixasse de lado essa carreira e se mudasse para Santiago do Chile, onde ficou por oito meses apenas escrevendo poesia.
            De volta ao Brasil, começou a colaborar com crônicas para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde até hoje mantém coluna no caderno ZH Donna, que circula aos domingos, e outra — às quartas-feiras — no Segundo Caderno. Escreve, também, uma coluna semanal para o sítio Almas Gêmeas e colabora com a revista Época.
             Seu primeiro livro, Strip-Tease (1985), Editora Brasiliense - São Paulo, foi o primeiro de seus trabalhos publicados. Seguiram-se Meia noite e um quarto (1987), Persona non grata (1991), De cara lavada (1995), Poesia Reunida (1998), Geração Bivolt (1995), Topless (1997) e Santiago do Chile (1996). Seu livro de crônicas Trem-Bala (1999), já na 9a. edição, foi adaptado com sucesso para o teatro, sob direção de Irene Brietzke. A autora é casada e tem duas filhas.

Texto extraído do livro "Martha Medeiros - Poesia Reunida", L&PM Editores - Porto Alegre, 1999, pág. 127.


http://www.releituras.com/mamedeiros_menu.asp

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A "Notre-Dame" de V. Hugo

Gonçalves Dias

Pitões, 1844
Satanás passeando — veio um dia
ao mundo sublunar e viu criada
a formosa Esmeralda — doce fada,
vivo sonho de viva fantasia.

Ora o diabo tem queda para a ironia.
— Hei de pregar, disse ele, caçoada
no padre eterno, que não sabe nada,
se não sabe o que é bom em poesia.

Falou desta maneira o Sr. Diabo,
escoucinhando no ar, com um jumento,
coçando a fula orelha e alçando o rabo.

E foi o resultado deste evento
parir ao Quasimodo — que no cabo
com o anjo do Senhor fez casamento.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Não-coisa, de Ferreira Gullar

O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.

Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?

A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes

só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa

de saliva e papilas
invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,

um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos

No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:

subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa
sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa ë fechada
à humana consciência.

O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.

Poema extraído dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, editados pelo Instituto Moreira Salles — São Paulo, nº 6, setembro de 1998, pág. 77.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Tarde de sábado, de Cecília Meireles


      
        A tardezinha de sábado, um pouco cinzenta, um pouco fria, parece não possuir nada de muito particular para ninguém. Os automóveis deslizam; as pessoas entram e saem dos cinemas; os namorados conversam por aqui e por ali; os bares funcionam ativamente, numa fabulosa produção de sanduíches e cachorros-quentes. Apesar da fresquidão, as mocinhas trazem nos pés sandálias douradas, enquanto agasalham a cabeça em echarpes de muitas voltas.

          Tudo isso é rotina. Há um certo ar de monotonia por toda parte. O bondinho do Pão de Açúcar lá vai cumprindo o seu destino turístico, e moços bem falantes explicam, de lápis na mão, em seus escritórios coloridos e envidraçados, apartamentos que vão ser construídos em poucos meses, com tantos andares, vista para todos os lados, vestíbulos de mármore, tanto de entrada, mais tantas prestações, sem reajustamento — o melhor emprego de capital jamais oferecido!
          Em alguma ruazinha simpática, com árvores e sossego, ainda há crianças deslumbradas a comerem aquele algodão de açúcar que de repente coloca na paisagem carioca uma pincelada oriental. E há os avós de olhos filosóficos, a conduzirem pela mão a netinha que ensaia os primeiros passeios, como uma bailarina principiante a equilibrar-se nas pontas dos sapatinhos brancos.
          Andam barquinhos pela baía, com um raio de sol a brilhar nas velas; há uns pescadores carregados de linhas, samburás, caniços, muito compenetrados da sua perícia; há famílias inteiras que não se sabe de onde vêm nem se pode imaginar para onde vão, e que ocupam muito lugar na calçada, com a boca cheia de coisas que devem ser balas, caramelos, pipocas, que passam de uma bochecha para a outra e lhes devem causar uma delícia infinita.
          Depois aparecem muitas pessoas bem vestidas, cavalheiros com sapatos reluzentes, senhoras com roupas de renda e chapéus imensos que a brisa da tarde procura docemente arrebatar. Há risos, pulseiras que brilham, anéis que faíscam, muita alegria: pois não há mesmo nada mais divertido que uma pessoa toda coberta de sedas, plumas e flores, a lutar com o vento maroto, irreverente e pagão.
          E depois são as belas igrejas acesas, todas ornamentadas, atapetadas, como jardins brancos de grandes ramos floridos
          Por uma rua transversal, está chegando um carro. E dentro dele vem a noiva, que não se pode ver, pois está coberta de cascatas de véus, como se viajasse dentro da Via-láctea. Todos param e olham, inutilmente. Ela é a misteriosa dona dessa tardezinha de sábado, que parecia simples, apenas um pouco cinzenta, um pouco fria. E a moça que vem, com a alma cheia de interrogações, para transformar seus dias de menina e adolescente, despreocupados e livres, em dias compactos de deveres e responsabilidades. É uma transição de tempos, de mundos. Mas os convidados a esperam felizes, e ela não terá que pensar nisso. Ela mal se lembra que é sábado, que é o dia de seu casamento, que há padrinhos e convidados. E quando a cerimônia chegar ao apogeu, talvez nem se lembre de quem é: separada dos acontecimentos da terra, subitamente incorporada ao giro do Universo.


Texto extraído do livro "Escolha o seu sonho", Editora Record – Rio de Janeiro, 2002, pág. 100.



domingo, 25 de outubro de 2009

Primavera, de Cecília Meireles


              A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

             Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
             Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
            Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
           Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
           Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
           Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.

Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.

sábado, 24 de outubro de 2009

Nem com uma flor, de Affonso Romano de Sant'Anna

"Até hoje só bati numa mulher,

mas com singular delicadeza"
Vinicius de Moraes

               Um amigo ia passando pela Avenida Atlântica quando viu um homem batendo numa mulher dentro de um carro estacionado. Resolveu parar e chamar a polícia. Mas iam passando pelo calçadão dois garotões atléticos que vendo o tumulto pararam também para saber. Meu amigo então lhes explica que o sujeito estava batendo na mulher.
             — Mas a mulher não é dele? - indagou o garotão.
             — E só porque é dele pode bater? - diz o amigo.
             — É, nessa você me pegou, cara.
             Nesta semana a OAB descobriu que em Imperatriz, no Maranhão, nos últimos cinco anos, maridos mataram 30 mulheres. Mas o fizeram por uma razão muito clara: não queriam pagar pensão nem partilhar os bens na separação. Diante desta estatística da terra de Sarney, os machos da terra de Tancredo ficam humilhados, porque eles só matam mulher por "traição", e, mesmo assim, em menor escala.
             Mas vou lhes contar outra estória: uma amiga estava em São Paulo numa conversa sobre espancamento de mulheres. De repente, falou-se de um conhecido professor que havia espancado a mulher (coisa, aliás, que acontece em várias faculdades do país). Reparem bem, estamos falando de gente fina. Não se trata de cachaceiros na subida do morro, do sujeito massacrado pela vida que chega em casa escorraçando as crianças, cães e mulheres. Estamos falando de gente inteligente, formada, com anel no dedo, que toma coquetéis com a gente e cita Marx, Hegel et caterva. Vai daí, alguém, comentando a razão por que o professor teria batido na mulher, sendo ele uma pessoa célebre, indaga: - Mas, afinal, ele é ele, e ela quem é?
          Na primeira estorinha vocês viram que um acha que a mulher é propriedade privada do marido, e por isto pode apanhar. Quer dizer: é igual quando a gente tem um cavalo ou cão. Já na segunda narrativa, a titulação acadêmica ou a importância hierárquica justifica a violência sobre o mais fraco. E a mulher, do ponto de vista muscular, é geralmente mais fraca que o homem. Por isto faz muito sentido quando na favela ao lado ouço as mulheres que apanham gritar: "Covarde! Vai bater num homem". E um garotão esclarecido, que estuda lutas marciais, ao ouvir a estória do professor espancador, observou: "Eu queria ver esse professor crescer para cima de mim".
          As estorinhas como essas são intermináveis. Lá vai outra. Uma amiga estava dando uma entrevista à televisão e o assunto era exatamente o espancamento de mulheres e a necessidade de se criar uma delegacia especial no Rio, como Franco Montoro criou em São Paulo, só para atender mulheres. E lá ia explicando o bê-á-bá da violência dos homens sobre as mulheres, lembrando que, quando uma mulher é violentada ou espancada, nas delegacias comuns têm que passar por vexames e cantadas, que os homens vêem a vítima como culpada, porque nossa sociedade nos convenceu de que a mulher é sempre uma Eva pecadora. Lembrava que em alguns países, além das delegacias para mulheres, há associações estruturadas para esconderem as vítimas, porque sabem que se muitas delas voltarem para casa serão até assassinadas. E foi explicando que em alguns lugares dos Estados Unidos existe um tratamento para maridos violentos, em sessões comuns, uma espécie de Associação de Alcoólatras Anônimos (os Espancadores Anônimos), que se curam e se tratam em grupo, porque isto é uma doença pessoal e social.
         Mas enquanto minha amiga dava a entrevista, os câmeras estavam indóceis. Parecia que o assunto era com eles. E aí, não agüentaram, interromperam a entrevista e um disse: — a gente trabalha na rua o dia inteiro, chega em casa cansado e a comida não está pronta, o que é que há? Ela está querendo apanhar! E a amiga tentou explicar: — então é só você que trabalhou? Ela não batalhou por aí em dupla jornada? Imagine se toda mulher fosse bater em marido que traz pouco ou nenhum dinheiro para casa?
        Os câmeras continuaram resmungando durante a entrevista. Não sei o que aconteceu quando eles chegaram em casa. Mas se houvesse na cidade uma delegacia para defender o direito das mulheres certamente pensariam duas vezes. Talvez não chegassem em casa sobraçando flores. Mas seguramente chegariam menos arrogantes.

(27.10.85)

Texto extraído do livro "A Mulher Madura", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1986, pág. 54.

http://www.releituras.com/arsant_flor.asp

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O rei reina e não governa, Tobias Barreto

(Apólogo)


Não sei porque a língua humana
Os brutos não falam mais,
Quando hoje têm melhor vida,
E há muita besta instruída
Nas ciências sociais...

Ultimamente entenderam
Que tinham também razão
De proclamar seus direitos
Pondo em uso os bons efeitos
Que trouxe a Revolução...

"Seja o leão, diz o asno,
Um rei constitucional:
Com assembléias mudáveis,
Com ministros responsáveis,
Não nos pode fazer mal.

Fiquem-lhe as garras ocultas,
Não ruja, não erga a voz,
Conforme a tese moderna
Qu'ele reina e não governa,
Quem governa somos nós...

Todas as bestas da terra,
Todas as bestas do mar
Tenham os seus delegados,
Sendo os ministros tirados
Do seio parlamentar..."

"Muito bem! grita o macaco,
A gente vai ser feliz!
Respeito a ciência alheia;
Publicista de mão cheia,
0 burro sabe o que diz.

Todavia, acho difícil
Que Dom Leão rugidor,
Sujeito à sede e à fome,
Queira ter somente o nome
De rei ou de imperador!...

Acostumado a pegar-nos
Com suas patas reais,
Calar-se, fingir-se fraco!...
Segundo penso eu... macaco...
Dom Leão não pode mais!"

Acode o asno: "Eu lhe explico,
Nada vai a objeção:
Se o rei viola o preceito,
Salvo nos fica o direito
De fazer revolução".

"Mestre burro, isto é asneira,
Palavrão de zurrador,
Esse direito é fumaça,
De que nos serve a ameaça,
Quando nos falta o valor?

Só vejo, que bem nos quadre
No trono, algum animal,
Que coma e viva deitado:
o porco!... Exemplo acabado
De rei constitucional..."

(1870)

Tobias Barreto de Meneses, figura de indiscutível relevo na cultura brasileira, professor de Direito que, na Faculdade do Recife, abriu novos rumos ao ensino jurídico no Brasil, a par de suas obras nessa especialidade e de estudos filosóficos que tiveram grande repercussão, foi também poeta e, por vezes, feriu notas brejeiras em sua lira. Poeta, não figura entre os maiores, embora como humorista do verso lhe não faltem graça e espontaneidade. Nascido no Sergipe a 7 de junho de 1839, faleceu no Recife a 27 de junho de 1889.

O apólogo acima foi extraído do livro "Antologia de Humorismo e Sátira", Editora Civilização Brasileira - Rio de Janeiro, 1957, pág. 95.

http://www.releituras.com/tbarreto_menu.asp

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Reminiscência, de Ziraldo

              Nasci numa pequena cidade de Minas. Até aí nada demais. Muita gente nasce em cidades pequenas, distantes e quietas. Seria feliz, de qualquer maneira, se quem lê neste instante pudesse saber a alegria que existe em se nascer num lugar assim, em que as ruas pequenas e estreitas, as altas palmeiras, a água macia da chuva que cai sempre, as muitas estrelas e a lua, as pedrinhas das calçadas, a meninada, a carteira da sala de aula, a mestra e mais uma quantidade destas lembranças simples sejam, mais tarde, influências reais na vida da gente. Na vida de quem, afinal, preferiu enfrentar a cidade grande: as águas desse mar, a luz dessas lâmpadas frias, a sala fechada, triste e sem perspectivas em que se ganha a vida, a cadeira quente e insegura das tardes de ir e vir — pura fadiga — das empresas, a luta, a dura luta de ser alguém, um peixe grande em mar estranhamente grande. A verdade é que, um dia, a pensar e refletir na grama macia da pracinha da matriz, a criança decidiu sair.

             E a estrada se abriu a sua frente. Vir era uma idéia. Fixa. Caminhar era fácil.
            A chegada: a rua imensa, as buzinas, as luzes, sinal verde, aquela cidade grande, grande ali, na sua frente. Cada face, cada ser que passava — pra lá e pra cá — inquietamente, tanta gente, suada, apressada, sem alegria, sem alma, a alma cerrada, enrustida, cada triste surpresa era a chegada.
Cheguei. Um táxi. A mala. As esquinas. Está bem, mas, que fazer? Sentei e pensei. Pela janela da casa alta vai a vida. Seria a vida? E disse a primeira frase na cidade grande, as primeiras palavras diante da grande luta e as palavras eram: Meu Deus, que saudade! E nem um dia me separava da pracinha da matriz. Cada dia que, a seguir, vi passar, esqueci.
           Diante da máquina, neste instante, há uma distância imensa entre aquele dia na missa cantada na minha igrejinha e este dia em que, diante de mim, diante de minha mulher e da minha casa feita de cidade grande, minhas filhas brincam de ser gente grande.
E elas. Que vai ser delas? Sem palmeiras, sem um pai de ar grave; sem entender a chuva a cair em jardins humildes, nas margaridas branquinhas; sem entender de lua e de estrelas — que céu aqui, pra se ver nem se vê —, sem brincar na lama das ruas, a lama das chuvas, casca de palmeira, descer as barracas, nadar sem mamãe saber, nas águas escuras, fim de quintal, quintal, quintal? sem quintal? pedrinha de calçada, marcar a canivete sua inicial na carteira da sala. Ainda bem que nasceram meninas.
          Já é diferente. Será que é? Sei lá. Entre a chegada e este instante, lembrança nenhuma. Sei que cheguei.
          E sei mais: que esta página está é uma grande besteira, dura de cintura, sem graça, uma m... Já se vê que quem nasceu para caratinguense nunca chega a Rubem Braga. E também tem mais: Quem é capaz de escrever uma página literária decente — igual a essa (?) — sem usar uma vez sequer a letra O? Leiam mais uma vez. Atentamente. Se tiver um — além deste aí em cima — eu como!

Texto extraído do livro "Crônicas Mineiras", Editora Ática — São Paulo, 1984, pág. 109.