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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O relógio, João C. de Melo Neto

1.
Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.


Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.


Uma vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.


Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;


e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade


que continua cantando
se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.

2.
O que eles cantam, se pássaros,
é diferente de todos:
cantam numa linha baixa,
com voz de pássaro rouco;


desconhecem as variantes
e o estilo numeroso
dos pássaros que sabemos,
estejam presos ou soltos;


têm sempre o mesmo compasso
horizontal e monótono,
e nunca, em nenhum momento,
variam de repertório:

 
dir-se-ia que não importa
a nenhum ser escutado.
Assim, que não são artistas
nem artesãos, mas operários


para quem tudo o que cantam
é simplesmente trabalho,
trabalho rotina, em série,
impessoal, não assinado,

de operário que executa
seu martelo regular
proibido (ou sem querer)
do mínimo variar.

3.
A mão daquele martelo
nunca muda de compasso.
Mas tão igual sem fadiga,
mal deve ser de operário;


ela é por demais precisa
para não ser mão de máquina,
a máquina independente
de operação operária.


De máquina, mas movida
por uma força qualquer
que a move passando nela,
regular, sem decrescer:


quem sabe se algum monjolo
ou antiga roda de água
que vai rodando, passiva,
graçar a um fluido que a passa;

 
que fluido é ninguém vê:
da água não mostra os senões:
além de igual, é contínuo,
sem marés, sem estações.

 
E porque tampouco cabe,
por isso, pensar que é o vento,
há de ser um outro fluido
que a move: quem sabe, o tempo.


4.
Quando por algum motivo
a roda de água se rompe,
outra máquina se escuta:
agora, de dentro do homem;


outra máquina de dentro,
imediata, a reveza,
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa.

 
Então se sente que o som
da máquina, ora interior,
nada possui de passivo,
de roda de água: é motor;

 
se descobre nele o afogo
de quem, ao fazer, se esforça,
e que êle, dentro, afinal,
revela vontade própria,


incapaz, agora, dentro,
de ainda disfarçar que nasce
daquela bomba motor
(coração, noutra linguagem)


que, sem nenhum coração,
vive a esgotar, gôta a gôta,
o que o homem, de reserva,
possa ter na íntima poça.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Tecendo a manhã, de João Cabral de Melo Neto




1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outro galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(A Educação pela Pedra)

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Rios sem discurso


A Gabino Alejandro Carriedo


Quando um rio corta, corta-se de vez

o discurso-rio de água que ele fazia;

cortado, a água se quebra em pedaços,

em poços de água, em água paralítica.

Em situação de poço, a água equivale

a uma palavra em situação dicionária:

e porque assim estanque, estancada;

e mais: porque assim estancada, muda,

e muda porque com nenhuma comunica,

porque cortou-se a sintaxe desse rio,

o fio de água por que ele discorria.


O curso de um rio, seu discurso-rio,

chega raramente a se reatar de vez;

um rio precisa de muito fio de água

para refazer o fio antigo que o fez.

Salvo a grandiloquência de uma cheia

lhe impondo interina outra linguagem,

um rio precisa de muita água em fios

par que todos os poços se enfrasem:

se reatando, de um para outro poço,

em frases curtas, então frase e frase,

até a sentença-rio do discurso único

em que se tem voz a seca ele combate.



MELO NETO, João Cabral de. Poesias Completas. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. p.26.