Frase do dia

Mostrando postagens com marcador Literatura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Literatura. Mostrar todas as postagens

sábado, 17 de outubro de 2009

Como Comecei a Escrever, Rubem Braga

             Já contei em uma crônica a primeira vez que vi meu nome em letra de forma: foi no jornalzinho "O ltapemirim", órgão oficial do Grêmio Domingos Martins, dos alunos do colégio Pedro Palácios, de Cachoeiro de Itapemirim. O professor de Português passara uma composição "A Lágrima" — e meu trabalho foi julgado tão bom que mereceu a honra de ser publicado.
             Eu ainda estava no curso secundário quando um de meus irmãos mais velhos — Armando — fundou em Cachoeiro um jornal que existe até hoje — o "Correio do Sul". Fui convidado a escrever alguma coisa, o que também aconteceu com meu irmão Newton, que fazia principalmente poemas.
             Eu escrevia artigos e crônicas sobre assuntos os mais variados; no verão mandava da praia de Marataizes uma crônica regular, chamada "Correio Maratimba". Quando fui para o Rio (na verdade para Niterói) por volta dos 15 anos, mandava correspondência para o Correio. Continuei a fazer o mesmo em 1931, quando mudei para Belo Horizonte.
             A essa altura meu irmão Newton trabalhava na redação do "Diário da Tarde" de Minas. Em começo de 1932 ele deixou o emprego e voltou para Cachoeiro; herdei seu lugar no jornal.
Passei então a escrever diária e efetivamente, e fui aprendendo a redigir com os profissionais como Octavio Xavier Ferreira e Newton Prates. Quando terminei meu curso de Direito, resolvi continuar trabalhando em jornal.
            Fazia crônicas, reportagens e serviços de redação. Ainda em 1932 tive uma experiência bastante séria: fuI fazer reportagem na frente de guerra da Mantiqueira missão aventurosa porque a direção de meu jornal'era favorável à Revolução Constitucionalista dos paulistas, e eu estava na frente getulista. Acabei preso e mandado de volta.
           A essa altura eu já era um profissional de imprensa, e nunca mais deixei de ser.

Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 4 - Crônicas", Editora Ática - São Paulo, 1980, pág. 4.

sábado, 10 de outubro de 2009

A Bola, de Luis Fernando Verissimo

           O pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que sentira ao ganhar a sua primeira bola do pai. Uma número 5 sem tento oficial de couro. Agora não era mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola.

            O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse "Legal!". Ou o que os garotos dizem hoje em dia quando não gostam do presente ou não querem magoar o velho.
            Depois começou a girar a bola, à procura de alguma coisa.
            - Como e que liga? - perguntou.
            - Como, como é que liga? Não se liga.
             O garoto procurou dentro do papel de embrulho.
             - Não tem manual de instrução?
            O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros. Que os tempos são decididamente outros.
            - Não precisa manual de instrução.
            - O que é que ela faz?
            - Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela.
            - O quê?
            - Controla, chuta...
            - Ah, então é uma bola.
            - Claro que é uma bola.
            - Uma bola, bola. Uma bola mesmo.
            - Você pensou que fosse o quê?
            - Nada, não.
            O garoto agradeceu, disse "Legal" de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na frente da tevê, com a bola nova do lado, manejando os controles de um videogame. Algo chamado Monster Baú, em que times de monstrinhos disputavam a posse de uma bola em forma de blip eletrônico na tela ao mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente.
           O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava ganhando da máquina. O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu equilibrar a bola no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto.
           - Filho, olha.
           O garoto disse "Legal" mas não desviou os olhos da tela.
           O pai segurou a bola com as mãos e a cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro de couro. A bola cheirava a nada.
           Talvez um manual de instrução fosse uma boa idéia, pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Sexa, Luis Fernando Verissimo

- Pai........
- Hummmmm?
- Como é o feminino de sexo?
- O quê?
- O feminino de sexo.
- Não tem.
- Sexo não tem feminino?
- Não.
- Só tem sexo masculino?
- É.Quer dizer,não.Existem dois sexos.Masculino e Feminino.
- E como é o feminino de sexo?
- Não tem feminino.Sexo é sempre masculino.
- Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e feminino.
- O sexo pode ser masculino ou feminino.A palavra "SEXO" é masculina.O SEXO masculino,o SEXO feminino.
- Não devia ser "A SEXA"?
- Não.
- Por que não?
- Porque não!Desculpe.Porque não."SEXO" é sempre masculino.
- O sexo da mulher é masculino?
- É.Não!O sexo da mulher é feminino.
- E como é o feminino?
- Sexo mesmo.Igual ao do homem.
- O sexo da mulher é igual ao do homem?
- É.Quer dizer...Olha aqui.Tem o SEXO masculino e o SEXO feminino,certo?
- Certo.
- São duas coisas diferentes.
- Então como é o feminino de sexo?
- É igual ao masculino.
- Mas não são diferentes?
- Não.Ou,são!Mas a palavra é a mesma.Muda o sexo,mas não muda a palavra.
- Mas então não muda o sexo.É sempre masculino.
- A palavra é masculina .
- Não." A palavra" é feminino.Se fosse masculino seria "o pal..."
- Chega!Vai brincar ,vai.
O garoto sai e a mãe entra.O pai comenta:
-Temos que ficar de olho nesse guri...
- Por quê?
Ele só pensa em gramática.

(Do Livro:Comédias para se Ler na Escola)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O Grande Mistério, Sérgio Porto

             Há dias já que buscavam uma explicação para os odores esquisitos que vinham da sala de visitas. Primeiro houve um erro de interpretação: o quase imperceptível cheiro foi tomado como sendo de camarão. No dia em que as pessoas da casa notaram que a sala fedia, havia um soufflé de camarão para o jantar. Daí...
             Mas comeu-se o camarão, que inclusive foi elogiado pelas visitas, jogaram as sobras na lata do lixo e — coisa estranha — no dia seguinte a sala cheirava pior.
            Talvez alguém não gostasse de camarão e, por cerimônia, embora isso não se use, jogasse a sua porção debaixo da mesa. Ventilada a hipótese, os empregados espiaram e encontraram apenas um pedaço de pão e uma boneca de perna quebrada, que Giselinha esquecera ali. E como ambos os achados eram inodoros, o mistério persistiu.
             Os patrões chamaram a arrumadeira às falas. Que era um absurdo, que não podia continuar, que isso, que aquilo. Tachada de desleixada, a arrumadeira caprichou na limpeza. Varreu tudo, espanou, esfregou e... nada. Vinte e quatro horas depois, a coisa continuava. Se modificação houvera, fora para um cheiro mais ativo.
            À noite, quando o dono da casa chegou, passou uma espinafração geral e, vitima da leitura dos jornais, que folheara no lotação, chegou até a citar a Constituição na defesa de seus interesses.
            — Se eu pago empregadas para lavar, passar, limpar, cozinhar, arrumar e ama-secar, tenho o direito de exigir alguma coisa. Não pretendo que a sala de visitas seja um jasmineiro, mas feder também não. Ou sai o cheiro ou saem os empregados.
           Reunida na cozinha, a criadagem confabulava. Os debates eram apaixonados, mas num ponto todos concordavam: ninguém tinha culpa. A sala estava um brinco; dava até gosto ver. Mas ver, somente, porque o cheiro era de morte.
           Então alguém propôs encerar. Quem sabe uma passada de cera no assoalho não iria melhorar a situação?
           -- Isso mesmo — aprovou a maioria, satisfeita por ter encontrado uma fórmula capaz de combater o mal que ameaçava seu salário.
          Pela manhã, ainda ninguém se levantara, e já a copeira e o chofer enceravam sofregamente, a quatro mãos. Quando os patrões desceram para o café, o assoalho brilhava. O cheiro da cera predominava, mas o misterioso odor, que há dias intrigava a todos, persistia, a uma respirada mais forte.
          Apenas uma questão de tempo. Com o passar das horas, o cheiro da cera — como era normal — diminuía, enquanto o outro, o misterioso — estranhamente, aumentava. Pouco a pouco reinaria novamente, para desespero geral de empregados e empregadores.
         A patroa, enfim, contrariando os seus hábitos, tomou uma atitude: desceu do alto do seu grã-finismo com as armas de que dispunha, e com tal espírito de sacrifício que resolveu gastar os seus perfumes. Quando ela anunciou que derramaria perfume francês no tapete, a arrumadeira comentou com a copeira:
         — Madame apelou para a ignorância.
         E salpicada que foi, a sala recendeu. A sorte estava lançada. Madame esbanjou suas essências com uma altivez digna de uma rainha a caminho do cadafalso. Seria o prestigio e a experiência de Carven, Patou, Fath, Schiaparelli, Balenciaga, Piguet e outros menores, contra a ignóbil catinga.
         Na hora do jantar a alegria era geral. Nas restavam dúvidas de que o cheiro enjoativo daquele coquetel de perfumes era impróprio para uma sala de visitas, mas ninguém poderia deixar de concordar que aquele era preferível ao outro, finalmente vencido.
         Mas eis que o patrão, a horas mortas, acordou com sede. Levantou-se cauteloso, para não acordar ninguém, e desceu as escadas, rumo à geladeira. Ia ainda a meio caminho quando sentiu que o exército de perfumistas franceses fora derrotado. O barulho que fez daria para acordar um quarteirão,quanto mais os da casa, os pobres moradores daquela casa, despertados violentamente , e que não precisavam perguntar nada para perceberem o que se passava. Bastou respirar.
        Hoje pela manhã, finalmente, após buscas desesperadas, uma das empregadas localizou o cheiro. Estava dentro de uma jarra, uma bela jarra, orgulho da família, pois tratava-se de peça raríssima, da dinastia Ming.
         Apertada pelo interrogatório paterno Giselinha confessou-se culpada e, na inocência dos seus 3 anos, prometeu não fazer mais.
         Não fazer mais na jarra, é lógico.

(Stanislaw Ponte Preta)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Ultimo soneto, de Alvares de Azevedo

Já da noite o palor me cobre o rosto,

Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!

Do leito, embalde num macio encosto,
Tento o sono reter!... Já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece...
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!

O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade.

Dá-me a esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos, por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!

domingo, 4 de outubro de 2009

Meu desejo, de Álvares de Azevedo

Meu desejo? era ser a luva branca
Que essa tua gentil mãozinha aperta:
A camélia que murcha no teu seio,
O anjo que por te ver do céu deserta....

Meu desejo? era ser o sapatinho
Que teu mimoso pé no baile encerra....
A esperança que sonhas no futuro,
As saudades que tens aqui na terra....

Meu desejo? era ser o cortinado
Que não conta os mistérios do teu leito;
Era de teu colar de negra seda
Ser a cruz com que dormes sobre o peito.

Meu desejo? era ser o teu espelho
Que mais bela te vê quando deslaças
Do baile as roupas de escomilha e flores
E mira-te amoroso as nuas graças!

Meu desejo? era ser desse teu leito
De cambraia o lençol, o travesseiro
Com que velas o seio, onde repousas,
Solto o cabelo, o rosto feiticeiro....

Meu desejo? era ser a voz da terra
Que da estrela do céu ouvisse amor!
Ser o amante que sonhas, que desejas
Nas cismas encantadas de languor!

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Ao dia do juizo, Gregório de Matos

O alegre do dia entristecido,
O silêncio da noite perturbado
O resplendor do sol todo eclipsado,
E o luzente da lua desmentido!

Rompa todo o criado em um gemido,
Que é de ti mundo? onde tens parado?
Se tudo neste instante está acabado,
Tanto importa o não ser, como haver sido.

Soa a trombeta da maior altura,
A que a vivos, e mortos traz o aviso
Da desventura de uns, d’outros ventura.

Acabe o mundo, porque é já preciso,
Erga-se o morto, deixe a sepultura,
Porque é chegado o dia do juízo.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Segunda Impaciência Do Poeta, Gregório de Matos

Cresce o desejo, falta o sofrimento,

Sofrendo morro, morro desejando,
Por uma, e outra parte estou penando
Sem poder dar alívio a meu tormento.

Se quero declarar meu pensamento,
Está-me um gesto grave acobardando,
E tenho por melhor morrer calando,
Que fiar-me de um néscio atrevimento.

Quem pretende alcançar, espera, e cala,
Porque quem temerário se abalança,
Muitas vezes o amor o desiguala.

Pois se aquele, que espera se alcança,
Quero ter por melhor morrer sem fala,
Que falando, perder toda esperança.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

A velha contrabandista, de Sérgio Porto

          Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega - tudo malandro velho - começou a desconfiar da velhinha.
          Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:
          - Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?
          A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:
          - É areia!
          Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.
          Mas o fiscal desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.
          Diz que foi aí que o fiscal se chateou:
         - Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.
          - Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:
          - Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?
          - O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha.
          - Juro - respondeu o fiscal.
          - É lambreta.

(Stanislaw Ponte Preta - Sérgio Porto)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Língua Brasileira, de Kledir Ramil

         "Outro dia encontrei um mandinho, um guri desses que andam pela rua sem carpim, de bragueta aberta, soltando pandorga. Eu vinha de bici, descendo a lomba pra ir na lancheria comprar umas bergamotas...".

Se você não é gaúcho, provavelmente não entendeu nada do que eu estava contando. No Rio Grande do Sul a gente chama tangerina de bergamota e carne moída de guisado. Bidê, que a maioria usa no banheiro é o nome que nós demos para a mesinha de cabeceira, que em alguns lugares chamam de criado mudo. E por aí vai. A privada nós chamamos de patente. Dizem que começou com a chegada dos primeiros vasos sanitários de louça, vindos da Inglaterra, que traziam impresso "Patent" número tal. E pegou.
         Ir aos pés no RS é fazer cocô. Eu acho tri elegante, poético. "Com licença, vou aos pés e já volto". Uma amiga carioca foi passear em Porto Alegre e precisou de um médico. A primeira coisa que ele perguntou foi: "Vais aos pés normalmente, minha filha?" Ela na mesma hora levantou e começou a fazer flexão.
          O Brasil tem dessas coisas, é um país maravilhoso, com o português como língua oficial, mas cheio de dialetos diferentes.
           No Rio é "e aí merrmão! CB, sangue bom! Vai rolá umach paradach". Até eu entender que merrmão era "meu irmão" levou um tempo. Em São Paulo eles botam um "i" a mais na frente do "n": "ôrra meu! Tô por deintro, mas não tô inteindeindo". E no interiorrr falam um erre todo enrolado: "a Ferrrnanda marrrcô a porrrteira". Dá um nó na língua. A vantagem é que a pronúncia deles no inglês é ótima.
          Em Mins, quer dizer em Minas, eles engolem letras e falam Belzonte, Nossenhora e qualquer objeto é chamado de trem. Lembrei daquela história do mineirinho na plataforma da estação. Quando ouviu um apito, falou apontando as malas: "Muié, pega os trem que o bicho tá vindo".
          No nordeste é tudo meu rei, bichinho, ó xente. Pai é painho, mãe é mainha, vó é vóinha. E pra você conseguir falar com o acento típico da região, é só cantar sempre a primeira sílaba de qualquer palavra numa nota mais aguda que as seguintes. As frases são sempre em escala descendente, ao contrário do sotaque gaúcho.
          Mas o lugar mais interessante de todos é Florianópolis, um paraíso sobre a terra, abençoado por Nossa Senhora do Desterrro.Os nativos tradicionais, conhecidos como Manezinnhos da Ilha, têm o linguajar mas simpático da nossa Língua Brasileira. Chamam lagartixa de crocodilinho de parede. Helicóptero é avião de rosca (que deve ser lido rôchca). Carne moída é boi ralado. Se você quiser um pastel de carne precisa pedir um envelope de boi ralado. Telefone público, o popular orelhão, é conhecido como poste de prosa e a ficha de telefone é pastilha de prosa. Ôvo eles chamam de semente de galinha e motel é lugar de instantinho. ".
         Dizem que vem da colonização açoriana, inclusive a pronúncia deliciosa de algumas expressões, como 'si quéisch quéisch, si não quéisch, disch'.
           Se você estiver por lá, viajando de carro, e preciar de alguma informação sobre a estrada pra voltar pra casa, deve prguntr pela 'briói', como é conhecida a BR-101.
           Em Porto Alegre, uma empresa tentou lançar um serviço de entrega a domicílio de comida chinesa, o Tele China. Só que um dos significados de china no RS é prostituta.
          Claro que não deu certo. Imagina a confusão, um cara liga às 2 da manhã, a fim de uma loira, e recebe a sugestão de Frango Xadrez com Rolinho Primavera. Banana Caramelada!
          Tudo isso é muito engraçado, mas às vezes dá problema sério. A primeira vez que minha mãe foi ao Rio de Janeiro entrou numa padaria e pediu: "Me dá um cacete!!!". Cacete pra nós é pão francês. O padeiro caiu na risada, chamou-a num canto e tentou contornar a situação. Ela ingenuamente emendou: "Mas o senhor não tem pelo menos um cacetinho?".

(RAMIL, 2003, P. 75-6.)

domingo, 27 de setembro de 2009

Preto e Branco, de Fernando Sabino

            Perdera o emprego, chegara a passar fome, sem que ninguém soubesse: por constrangimento, afastara-se da roda boêmia que antes costumava freqüentar - escritores, jornalistas, um sambista de cor que vinha a ser o seu mais velho companheiro de noitadas.

             De repente, a salvação lhe apareceu na forma de um americano, que lhe oferecia um emprego numa agência. Agarrou-se com unhas e dentes à oportunidade, vale dizer, ao americano, para garantir na sua nova função uma relativa estabilidade.
             E um belo dia vai seguindo com o chefe pela rua México, já distraído de seus passados tropeços, mas tropeçando obstinadamente no inglês com que se entendiam - quando vê do outro lado da rua um preto agitar a mão para ele.
             Era o sambista seu amigo. Ocorreu-lhe desde logo que ao americano poderia parecer estranha tal amizade, e mais ainda incompatível com a ética ianque a ser mantida nas funções que passara a exercer. Lembrou-se num átimo que o americano em geral tem uma coisa muito séria chamada preconceito racial e seu critério de julgamento da capacidade funcional dos subordinados talvez se deixasse influir por essa odiosa deformação. Por via das dúvidas correspondeu ao cumprimento de seu amigo da maneira mais discreta que lhe foi possível, mas viu em pânico que ele atravessava a rua e vinha em sua direção, sorriso aberto e braços prontos para um abraço.
              Pensou rapidamente em se esquivar - não dava tempo: o americano também se detivera, vendo o preto aproximar-se. Era seu amigo, velho companheiro, um bom sujeito, dos melhores mesmo que já conhecera - acaso jamais chegara sequer a se lembrar que se tratava de um preto? Agora, com o gringo ali a seu lado, todo branco e sardento, é que percebia pela primeira vez: não podia ser mais preto. Sendo assim, tivesse paciência: mais tarde lhe explicava tudo, haveria de compreender. Passar fome era muito bonito nos romances de Knut Hamsun, lidos depois do jantar, e sem credores à porta. Não teve mais dúvidas: virou a cara quando o outro se aproximou e fingiu que não o via, que não era com ele.
            E não era mesmo com ele.
           Porque antes de cumprimentá-lo, talvez ainda sem tê-lo visto, o sambista abriu os braços para acolher o americano - também seu amigo.

SABINO, Fernando. A mulher do vizinho. 7 ed. Rio de Janeiro: Record, 1962, p.163-4.

O homem da favela, de Manuel Lobato

              Dr. Levi dá plantão no Hospital dos Operários que fica perto de uma favela. Ele é meio conhecido na favela porque sobe o morro de vez em quando, em visita médica à Associação dos Deficientes Visuais. Mesmo assim, já foi assaltado nove vezes, sempre de manhã, quando está saindo do pátio em seu carro. Por causa disso, Dr. Levi anda prevenido. Não compra revólver mas, ao deixar o plantão, já vem com a chave do automóvel na mão, passos rápidos, abre a porta, entra depressa, liga o motor, engrena a marcha, acelera e dispara. Não se preocupa com os malandros que tentam abordá-lo na estrada.

             A neblina prejudica a visão do médico nessa manhã de inverno. Ele aperta o dispositivo de água, liga o limpador que faz o semicírculo com seu rastro no pára-brisa. Vê no meio da estrada, ainda distante, um pedestre que finge embriaguez. O marginal está um tanto desnorteado, meio aéreo, andando sem rumo, em ziguezague. Parece trazer um porrete na mão.
            Dr. Levi será obrigado a diminuir a aceleração e a reduzir a marcha. Se o mau elemento continuar na pista, terá de frear. Se parar, poderá ser assaltado pela décima vez. O carro se aproxima do malandro. Ele usa boné com o bico puxado para frente, cobrindo-lhe a testa. Óculos escuros para disfarce, ensaia os cambaleios, tomba um pouco a cabeça, olha para cima, procura o sol que está aparecendo, sem pressa, com má vontade.
            O médico, habituado a salvar vidas, tem ímpeto de matar. Acelera mais, joga o farol alto na cara do pilantra, buzina repetidas vezes. O mau-caráter faz que procura o acostamento, mas permanece na pista.
            O carro vai atropelar o velhaco. Talvez até passe por cima dele, se continuar fingindo que está bêbado. Menos um para atrapalhar a vida de gente séria.
            O esperto pressente o perigo, deve ter adivinhado que o automóvel não vai desviar-se dele, ouve de novo a buzina, o barulho do motor cada vez mais acelerado. De fato, o carro não desvia de seu intento. Obstinado, segue seu rumo. Vai tirar um fino.
           O vivaldino é atingido de raspão, cambaleia agora de verdade, cai de lado. O cirurgião ouve o baque, sente o impacto do esbarro.
           Vê pelo retrovisor interno a vítima caída à beira da estrada. O vidro de trás está embaçado, mas permite distinguir o vulto, imagem refratada. Gotas de água escorrem pelo vidro não como lágrimas, e, sim, como bagas de suor pelo esforço da corrida. Não há piedade, há cansaço.
            Dr. Levi nota que o retrovisor externo está torto, danificado. Diminui a marcha, abaixa o vidro lateral, tateia o retrovisor do lado de fora. O espelho está partido, sujo de sangue. O profissional se sente vingado, satisfeito, vitorioso, como se estivesse saindo do bloco cirúrgico, após delicada operação, na qual fica provada a sua frieza, competência, habilidade. O dom de salvar o semelhante e de também salvar-se.
           No dia seguinte, ao cair da tarde, chega o plantonista ao Hospital dos Operários. Toma conhecimento do acidente. O paciente – algumas fraturas, escoriações – está fora de perigo. Deu entrada ontem de manhã, mal havia chegado o substituto do Dr. Levi.
            Na ficha, anotações sobre a vítima: funcionário da Associação. Seus pertences: recibo das mensalidades, uns trocados, óculos e bengala. Cego.


LOBATO, Manuel. "O homem da favela". LEITE, Alcione Ribeiro. O fino do Conto. Rio de Janeiro: Editora RHJ.

sábado, 26 de setembro de 2009

Cântico Negro, de José Régio


Crystal Palace Park, London Borough of Bromley, SE19



"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

Palavras, de Olavo Bilac

As palavras do amor expiram como os versos,

Com que adoço a amargura e embalo o pensamento:
Vagos clarões, vapor de perfumes dispersos,
Vidas que não têm vida, existências que invento;

Esplendor cedo morto, ânsia breve, universos
De pó, que o sopro espalha ao torvelim do vento,
Raios de sol, no oceano entre as águas imersos
-As palavras da fé vivem num só momento...

Mas as palavras más, as do ódio e do despeito,
O "não!" que desengana, o "nunca!" que alucina,
E as do aleive, em baldões, e as da mofa, em risadas,

Abrasam-nos o ouvido e entram-nos pelo peito:
Ficam no coração, numa inércia assassina,
Imóveis e imortais, como pedras geladas.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Quadrilha, de Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo


que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi para o Estados Unidos, Teresa para o

convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto

Fernandes

que não tinha entrado na história.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Conto de mistério, de Sérgio Porto - Stanislaw Ponte Preta

                Com a gola do paletó levantada e a aba do chapéu abaixada, caminhando pelos cantos escuros, era quase impossível a qualquer pessoa que cruzasse com ele ver seu rosto. No local combinado, parou e fez o sinal que tinham já estipulado à guisa de senha. Parou debaixo do poste, acendeu um cigarro e soltou a fumaça em três baforadas compassadas. Imediatamente um sujeito mal-encarado, que se encontrava no café em frente, ajeitou a gravata e cuspiu de banda.

                Era aquele. Atravessou cautelosamente a rua, entrou no café e pediu um guaraná. O outro sorriu e se aproximou:
             - Siga-me! - foi a ordem dada com voz cava. Deu apenas um gole no guaraná e saiu. O outro entrou num beco úmido e mal-iluminado e ele - a uma distância de uns dez a doze passos - entrou também.
             Ali parecia não haver ninguém. O silêncio era sepulcral. Mas o homem que ia na frente olhou em volta, certificou-se de que não havia ninguém de tocaia e bateu numa janela. Logo uma dobradiça gemeu e a porta abriu-se discretamente.
            Entraram os dois e deram numa sala pequena e enfumaçada onde, no centro, via-se uma mesa cheia de pequenos pacotes. Por trás dela um sujeito de barba crescida, roupas humildes e ar de agricultor parecia ter medo do que ia fazer. Não hesitou - porém - quando o homem que entrara na frente apontou para o que entrara em seguida e disse: "É este".
            O que estava por trás da mesa pegou um dos pacotes e entregou ao que falara. Este passou o pacote para o outro e perguntou se trouxera o dinheiro. Um aceno de cabeça foi a resposta. Enfiou a mão no bolso, tirou um bolo de notas e entregou ao parceiro. Depois virou-se para sair. O que entrara com ele disse que ficaria ali.
           Saiu então sozinho, caminhando rente às paredes do beco. Quando alcançou uma rua mais clara, assoviou para um táxi que passava e mandou tocar a toda pressa para determinado endereço. O motorista obedeceu e, meia hora depois, entrava em casa a berrar para a mulher:
           - Julieta! Ó Julieta... consegui.
           A mulher veio lá de dentro euxugando as mãos em um avental, a sorrir de felicidade. O marido colocou o pacote sobre a mesa, num ar triunfal. Ela abriu o pacote e verificou que o marido conseguira mesmo. Ali estava: um quilo de feijão.

Fonte: http://www.casadobruxo.com.br/

Para viver um grande amor, de Vinícius de Moraes

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Guernica, Murilo Mendes

Subsiste, Guernica, o exemplo macho,
Subsiste para sempre a honra castiça,
A jovem e antiga tradição do carvalho
Que descerra o pálio de diamante.

A força do teu coração desencadeado
Contactou os subterrâneos de Espanha.
E o mundo da lucidez a recebeu:
O ar voa incorporando-se teu nome.

In: MENDES, Murilo. Antologia poética. Sel. João Cabral de Melo Neto. Introd. José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro: Fontana; Brasília: INL, 1976

Espelho, de Mario Quintana

Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)
Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..."

Relíquia íntima, de Machado de Assis

Ilustríssimo, caro e velho amigo,
Saberás que, por um motivo urgente,
Na quinta-feira, nove do corrente,
Preciso muito de falar contigo.

E aproveitando o portador te digo,
Que nessa ocasião terás presente,
A esperada gravura de patente
Em que o Dante regressa do Inimigo.

Manda-me pois dizer pelo bombeiro
Se às três e meia te acharás postado
Junto à porta do Garnier livreiro:

Senão, escolhe outro lugar azado;
Mas dá logo a resposta ao mensageiro,
E continua a crer no teu Machado.