Frase do dia

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Quem morre, de Pablo Neruda

Morre lentamente

Quem não viaja,
Quem não lê,
Quem não ouve música,
Quem não encontra graça em si mesmo

Morre lentamente
Quem destrói seu amor próprio,
Quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente
Quem se transforma em escravo do hábito
Repetindo todos os dias os mesmos trajeto,
Quem não muda de marca,
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou
Não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente
Quem evita uma paixão e seu redemoinho de emoções, Justamente as que resgatam o brilho dos
Olhos e os corações aos tropeços.

Morre lentamente
Quem não vira a mesa quando está infeliz
Com o seu trabalho, ou amor,
Quem não arrisca o certo pelo incerto
Para ir atrás de um sonho,
Quem não se permite, pelo menos uma vez na vida,
Fugir dos conselhos sensatos...

Viva hoje !
Arrisque hoje !
Faça hoje !
Não se deixe morrer lentamente !

NÃO SE ESQUEÇA DE SER FELIZ

Discurso, de Cecília Meireles

E aqui estou, cantando.


Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.


Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.


Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.


Pois aqui estou, cantando.


Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?


Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Os 10 erros mais cometidos em redação

Há alguns equívocos muito comuns em redações e, por este motivo, estão no patamar dos mais cometidos. Mas isso ocorre apenas por falta de conhecimento, portanto, uma vez informados, os estudantes não voltam a cometê-los.


Vejamos, então, os 10 erros mais cometidos em redação: (não estão por ordem de importância)

1. “Fazem dez anos que não vemos tantas mudanças”. O verbo “fazer” no sentido temporal, de tempo decorrido ou de fenômenos atmosféricos é impessoal, ou seja, fica no singular: Faz dez anos... Faz muito frio...

2. “Houveram muitas passeatas nesta semana em prol da igualdade racial.” O verbo haver acompanha o mesmo raciocínio do verbo “fazer”, citado acima. No sentido de existir ou na ideia de tempo decorrido, o verbo haver é impessoal: Houve muitas passeatas... Há tempos não o vejo... Havia algumas cadeiras disponíveis.

3. “Para mim escolher, preciso de um tempo.” Na dúvida verifique quem é o sujeito do verbo. No caso, o verbo “escolher” não tem sujeito, pois “mim” não pode ser! O certo seria o pronome “eu”: para eu escolher. A expressão “para mim” só funciona quando é objeto direto: Traga essa folha para mim. Dessa forma, sempre diga e escreva: Para eu fazer, para eu levar, para eu falar, pois o verbo precisa de um sujeito!

4. “Esse assunto fica entre eu e você!” Quando a preposição existe, neste caso “entre”, usa-se o pronome oblíquo. O correto é: entre mim e você ou entre mim e ti. Portanto, use pronome oblíquo tônico (mim, ti, si, ele, ela, nós, vós, si, eles, elas) após preposição: falava sobre mim, faça por nós, entre mim e você não há problemas, falavam entre si.

5. “Há muito tempo atrás, comprei uma bicicleta.” O verbo “há” tem sentido de tempo passado, logo não há necessidade de adicionar “atrás”. Ou você escolhe um ou outro: Há muito tempo... Tempos atrás... Há dez anos... Dez anos atrás.

6. “Então, pegou ele pela gola.” Quando for necessário que um pronome seja objeto direto (pegou algo: ele), nunca coloque pronome pessoal, opte pelo caso oblíquo átono (me, te, se, o, a, lhe, nos, vos, se, os, as, lhes): Pegou-o, avisou-o, apresentei-a, levou-nos, ama-me, leva-nos.

7. Aonde você estava? “Aonde” indica ideia de movimento, enquanto “onde” refere-se somente a lugar. Portanto: Onde você estava? E Aonde nós vamos agora?

8. “A situação vinha de encontro ao que ele desejava.” Se é uma situação que a pessoa desejava, será: ao encontro de, expressão que designa favorecimento, estar de acordo. Já a locução “de encontro a” tem sentido de oposição, de choque: Ele foi de encontro ao poste.

9. “Esse ano vamos fazer diferente.” Se é o ano vigente, então use o pronome “este”, uma vez que indica proximidade: Esta sala de aula, esta semana está sendo ótima, este dia vai ser abençoado, este ano está sendo o melhor de todos, esta noite veremos estrelas.

10. O verbo “adequar” é defectivo, isso quer dizer que não é conjugado de todas as formas. Assim: Isso não se adéqua... Ele não se adéqua... Eu não me adéquo... são orações equivocadas. Outros verbos também passam por este tipo de problema, como: abolir, banir, colorir, demolir, feder, latir. O verbo adequar é correto e usado com mais frequência nos modos infinitivo (adequar) e particípio (adequado).


Por Sabrina Vilarinho
Graduada em Letras
Equipe Brasil Escola

http://www.brasilescola.com

domingo, 1 de novembro de 2009

Conclusões de Aninha, de Cora Coralina

Estavam ali parados. Marido e mulher.

Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?

Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar."
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.

 
Texto extraído do livro "Vintém de cobre - Meias confissões de Aninha", Global Editora — São Paulo, 2001, pág. 174.

sábado, 31 de outubro de 2009

O Navio Negreiro, Tragédia no Mar (VI)



Castro Alves

Existe um povo que a bandeira empresta
Pr'a cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
...Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!


Este poema foi publicado no livro "A cachoeira de Paulo Afonso: poema original brasileiro", em 1876.



Extraído do livro "Castro Alves - Obra completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1960, organização e notas de Eugênio Gomes.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O nascimento da crônica, Machado de Assis

                 Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.

               Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
              Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
                Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
               Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.
               Não afirmo sem prova.
               Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
               Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?



O texto acima foi publicado no livro "Crônicas Escolhidas”, Editora Ática – São Paulo, 1994, pág. 13, e extraído do livro "As Cem Melhores Crônicas Brasileiras", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2007, pág. 27, organização e introdução de Joaquim Ferreira dos Santos.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

De cara lavada - 177

Martha Medeiros
hoje me desfiz dos meus bens
vendi o sofá cujo tecido desenhei
e a mesa de jantar onde fizemos planos

o quadro que fica atrás do bar
rifei junto com algumas quinquilharias
da época em que nos juntamos

a tevê e o aparelho de som
foram adquiridos pela vizinha
testemunha do quanto erramos

a cama doei para um asilo
sem olhar pra trás e lembrar
do que ali inventamos

aquele cinzeiro de cobre
foi de brinde com os cristais
e as plantas que não regamos

coube tudo num caminhão de mudança
até a dor que não soubemos curar
mas que um dia vamos

             Martha Medeiros (1961) é gaúcha de Porto Alegre, onde reside desde que nasceu. Fez sua carreira profissional na área de Propaganda e Publicidade, tenho trabalhado como redatora e diretora de criação em vária agências daquela cidade. Em 1993, a literatura fez com que a autora, que nessa ocasião já tinha publicado três livros, deixasse de lado essa carreira e se mudasse para Santiago do Chile, onde ficou por oito meses apenas escrevendo poesia.
            De volta ao Brasil, começou a colaborar com crônicas para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde até hoje mantém coluna no caderno ZH Donna, que circula aos domingos, e outra — às quartas-feiras — no Segundo Caderno. Escreve, também, uma coluna semanal para o sítio Almas Gêmeas e colabora com a revista Época.
             Seu primeiro livro, Strip-Tease (1985), Editora Brasiliense - São Paulo, foi o primeiro de seus trabalhos publicados. Seguiram-se Meia noite e um quarto (1987), Persona non grata (1991), De cara lavada (1995), Poesia Reunida (1998), Geração Bivolt (1995), Topless (1997) e Santiago do Chile (1996). Seu livro de crônicas Trem-Bala (1999), já na 9a. edição, foi adaptado com sucesso para o teatro, sob direção de Irene Brietzke. A autora é casada e tem duas filhas.

Texto extraído do livro "Martha Medeiros - Poesia Reunida", L&PM Editores - Porto Alegre, 1999, pág. 127.


http://www.releituras.com/mamedeiros_menu.asp

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A "Notre-Dame" de V. Hugo

Gonçalves Dias

Pitões, 1844
Satanás passeando — veio um dia
ao mundo sublunar e viu criada
a formosa Esmeralda — doce fada,
vivo sonho de viva fantasia.

Ora o diabo tem queda para a ironia.
— Hei de pregar, disse ele, caçoada
no padre eterno, que não sabe nada,
se não sabe o que é bom em poesia.

Falou desta maneira o Sr. Diabo,
escoucinhando no ar, com um jumento,
coçando a fula orelha e alçando o rabo.

E foi o resultado deste evento
parir ao Quasimodo — que no cabo
com o anjo do Senhor fez casamento.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Não-coisa, de Ferreira Gullar

O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.

Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?

A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes

só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa

de saliva e papilas
invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,

um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos

No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:

subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa
sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa ë fechada
à humana consciência.

O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.

Poema extraído dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, editados pelo Instituto Moreira Salles — São Paulo, nº 6, setembro de 1998, pág. 77.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Tarde de sábado, de Cecília Meireles


      
        A tardezinha de sábado, um pouco cinzenta, um pouco fria, parece não possuir nada de muito particular para ninguém. Os automóveis deslizam; as pessoas entram e saem dos cinemas; os namorados conversam por aqui e por ali; os bares funcionam ativamente, numa fabulosa produção de sanduíches e cachorros-quentes. Apesar da fresquidão, as mocinhas trazem nos pés sandálias douradas, enquanto agasalham a cabeça em echarpes de muitas voltas.

          Tudo isso é rotina. Há um certo ar de monotonia por toda parte. O bondinho do Pão de Açúcar lá vai cumprindo o seu destino turístico, e moços bem falantes explicam, de lápis na mão, em seus escritórios coloridos e envidraçados, apartamentos que vão ser construídos em poucos meses, com tantos andares, vista para todos os lados, vestíbulos de mármore, tanto de entrada, mais tantas prestações, sem reajustamento — o melhor emprego de capital jamais oferecido!
          Em alguma ruazinha simpática, com árvores e sossego, ainda há crianças deslumbradas a comerem aquele algodão de açúcar que de repente coloca na paisagem carioca uma pincelada oriental. E há os avós de olhos filosóficos, a conduzirem pela mão a netinha que ensaia os primeiros passeios, como uma bailarina principiante a equilibrar-se nas pontas dos sapatinhos brancos.
          Andam barquinhos pela baía, com um raio de sol a brilhar nas velas; há uns pescadores carregados de linhas, samburás, caniços, muito compenetrados da sua perícia; há famílias inteiras que não se sabe de onde vêm nem se pode imaginar para onde vão, e que ocupam muito lugar na calçada, com a boca cheia de coisas que devem ser balas, caramelos, pipocas, que passam de uma bochecha para a outra e lhes devem causar uma delícia infinita.
          Depois aparecem muitas pessoas bem vestidas, cavalheiros com sapatos reluzentes, senhoras com roupas de renda e chapéus imensos que a brisa da tarde procura docemente arrebatar. Há risos, pulseiras que brilham, anéis que faíscam, muita alegria: pois não há mesmo nada mais divertido que uma pessoa toda coberta de sedas, plumas e flores, a lutar com o vento maroto, irreverente e pagão.
          E depois são as belas igrejas acesas, todas ornamentadas, atapetadas, como jardins brancos de grandes ramos floridos
          Por uma rua transversal, está chegando um carro. E dentro dele vem a noiva, que não se pode ver, pois está coberta de cascatas de véus, como se viajasse dentro da Via-láctea. Todos param e olham, inutilmente. Ela é a misteriosa dona dessa tardezinha de sábado, que parecia simples, apenas um pouco cinzenta, um pouco fria. E a moça que vem, com a alma cheia de interrogações, para transformar seus dias de menina e adolescente, despreocupados e livres, em dias compactos de deveres e responsabilidades. É uma transição de tempos, de mundos. Mas os convidados a esperam felizes, e ela não terá que pensar nisso. Ela mal se lembra que é sábado, que é o dia de seu casamento, que há padrinhos e convidados. E quando a cerimônia chegar ao apogeu, talvez nem se lembre de quem é: separada dos acontecimentos da terra, subitamente incorporada ao giro do Universo.


Texto extraído do livro "Escolha o seu sonho", Editora Record – Rio de Janeiro, 2002, pág. 100.