Frase do dia

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Soneto, Gregório de Matos

Carregado de mim ando no mundo,

E o grande peso embarga-me as passadas,

Que como ando por vias desusadas,

Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

 

O remédio será seguir o imundo Caminho,

onde dos mais vejo as pisadas,

Que as bestas andam juntas mais ornadas,

Do que anda só o engenho mais profundo.

 

Não é fácil viver entre os insanos,

Erra, quem presumir, que sabe tudo,

Se o atalho não soube dos seus danos.

 

O prudente varão há de ser mudo,

Que é melhor neste mundo em mar de enganos

Ser louco cos demais, que ser sisudo.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Acaso, Álvaro de Campos

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

 
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.


Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.


Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,


Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?


Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterônimo de Fernando Pessoa

http://www.citador.pt/poemas.php?op=10&refid=200809030434

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Crônica do Amor, Arnaldo Jabor

Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo a porta.
O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar.
Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referenciais.
Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca.
Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.
Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco.
Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina Natal e ela detesta o Ano Novo, nem no ódio vocês combinam. Então?
Então, que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante do que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.
Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro, e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado e ainda assim você não consegue despachá-lo.
Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita na boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama este cara?
Não pergunte pra mim; você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem seu valor.
É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível.
Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo desse, criatura, por que está sem um amor?
Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.
Não funciona assim.
Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o Amor tem de indefinível.
Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó!
Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é! Pense nisso. Pedir é a maneira mais eficaz de merecer. É a contingência maior de quem precisa.

 

Arnaldo Jabor

http://www.pensador.info/cronicas_de_arnaldo_jabor/

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Fernando Pessoa

"O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis".




´Fernando Pessoa

Chuva, Palavra Cantada



Após uma seca de quase 2 meses,....... Enfim, hoje está chovendo em Bocaina.

Este video..... muito fofo...... é em homenagem ao meu afilhado Lucas.

sábado, 28 de agosto de 2010

O MUNDO NÃO É MATERNAL..., Martha Medeiros

É bom ter mãe quando se é criança, e também quando se é adulto. Quando se é adolescente a gente pensa que viveria melhor sem ela, mas é erro de cálculo. Mãe é bom em qualquer idade. Sem ela, ficamos órfãos de tudo, já que o mundo lá fora não é nem um pouco maternal conosco.
O mundo não se importa se estamos desagasalhados e passamos fome. Não liga se virarmos a noite na rua, não dá a mínima se estamos acompanhados por maus elementos. O mundo quer defender o seu, não o nosso.
O mundo quer que a gente fique horas no telefone, torrando dinheiro. Quer que a gente case logo e compre um apartamento que vai nos deixar endividados por vinte anos. O mundo quer que a gente ande na moda, que a gente troque de carro, que a gente tenha boa aparência e estoure o cartão de crédito. Mãe também quer que a gente tenha boa aparência, mas está mais preocupada com o nosso banho, com os nossos dentes e nossos ouvidos, com a nossa limpeza interna: não quer que a gente se drogue, que a gente fume, que a gente beba.
O mundo nos olha superficialmente. Não consegue enxergar através. Não detecta nossa tristeza, nosso queixo que treme, nosso abatimento. O mundo quer que sejamos lindos, sarados e vitoriosos para enfeitar a ele próprio, como se fôssemos objetos de decoração do planeta. O mundo não tira nossa febre, não penteia nosso cabelo, não oferece um pedaço de bolo feito em casa.
O mundo quer nosso voto, mas não quer atender nossas necessidades. O mundo, quando não concorda com a gente, nos pune, nos rotula, nos exclui. O mundo não tem doçura, não tem paciência, não pára para nos ouvir. O mundo pergunta quantos eletrodomésticos temos em casa e qual é o nosso grau de instrução, mas não sabe nada dos nossos medos de infância, das nossas notas no colégio, de como foi duro arranjar o primeiro emprego. Para o mundo, quem menos corre, voa. Quem não se comunica se trumbica. Quem com ferro fere com ferro será ferido. O mundo não quer saber de indivíduos, e sim, de slogans e estatísticas.
Mãe é de outro mundo. É emocionalmente incorreta, exclusivista, parcial, metida, brigona, insistente, dramática, chega a ser até corruptível se oferecermos em troca alguma atenção. Sofre no lugar da gente, se preocupa com detalhes e tenta adivinhar todas as nossas vontades, enquanto o mundo propriamente dito exige eficiência máxima, seleciona os mais bem-dotados e cobra caro pelo seu tempo. Mãe é de graça.
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Martha Medeiros

Isto

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
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Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
.
Fernando Pessoa
Fernando Pessoa - Obra Poética
Editora Nova Aguilar, p. 165

Nalgum lugar, Zeca Baleiro

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Menos é mais, de Fernanda Pinho

            Nove em cada dez mulheres estão insatisfeitas com seu peso e, claro, eu sou uma delas. Tenho todas as neuroses femininas, por que não sofreria com a mais ferrenha? Meu peso me incomoda, me faz chorar, cutuca minha autoestima. Em dias de TPM então...sou a mais pesada do mundo. Mas chega uma hora em que a gente cansa de se lamentar e toma a decisão derradeira: fazer uma dieta! Possibilidades não faltam: dieta da lua, dieta da sopa, dieta dos pontos, dieta do sangue. No entanto, nenhuma delas, embora vendidas como milagrosas, resolvem meu problema. É que o que me pesa não é o corpo, é a alma.

           Achava que esse seria um problema crônico, que eu carregaria até o fim dos meus dias. Quem já ouviu falar em dieta para a alma, afinal? Até que, numa conversa com minha amiga Thais, em que ela falava sobre seu novo lema de vida, veio a luz. Menos é mais. O novo lema da Thais virou minha dieta. A salvação da minha alma.

           Decidi que era importante começar cortando aquilo o que mais me pesa. E então, Roberto e Erasmo, esses nutricionistas do espírito, me sopraram uma dica: "sei que mundo pesa muitos quilos, não me leve a mal se eu lhe pedir para cortar os grilos". É isso! Tenho certeza de que se eu conseguir eliminar os grilos da minha vida - ou cismas, já que não estamos mais nos anos 70 - ficarei consideravelmente mais leve com o tempo. Claro que não é assim tão simples. As cismas são atraentes, por isso é tão difícil se desapegar delas. E vem sempre servidas com acompanhantes tão atraentes quanto: dúvida, insegurança, medo. É difícil resistir. A cisma está para a alma assim como o carboidrato está para o corpo. Você se farta deles e depois tem que conviver com a culpa. E com a indigestão. Se bater aquela vontade incontrolável de ter uma cisminha, adotarei a mesma conduta para o consumo de lembranças do passado: a prioridade é consumir de manhã, já que terei o dia todo para me livrar daquilo. À noite, os revertérios são danosos.

         Aperitivos como fazer telefonemas de madrugada, mandar e-mail ou estabelecer qualquer tipo de comunicação (eletrônica ou não) com pessoas que não se importam comigo também estão terminantemente proibidos. É difícil, mas não impossível. Se bater aquela ânsia de fazer uma loucurinha, vou ler um livro, assistir um episódio do meu seriado preferido, ouvir uma música. Funciona como barrinhas de cereal (só que é bem mais gostoso) e ainda ajuda a evitar o acúmulo de tristezinhas localizadas.

          Sonhos e preocupações com o futuro são permitidos. Saco vazio não para em pé. E alma sem sonho também não. Mas tudo em excesso faz mal. O ideal é consumir sonhos um dia sim e outro não. Nos dias "não", vou tentar sossegar o espírito com sonhos de padaria.

         Preocupação com o que os outros vão pensar e sentimentos por quem não merece? Esquecerei! Não tenho a menor intenção de ter uma alma obesa mórbida. Do jeito que tá já tá difícil carregar. Para não ficar aquele vazio é só eu substituir: preocupação agora só com a minha própria vida e sentimentos apenas por quem realmente se importa comigo.

        Tenho certeza de que com esses cortes e substituições, em breve estarei como a música de Secos e Molhados: "leve, como leve pluma. Muito leve, pousa". Segunda-feira eu começo.

Fonte: Crônica do Dia

www.blogdaferdi.blogspot.com

Esboço para uma Teoria das Emoções, Sartre

"Essa 'assunção' de si que caracteriza a realidade humana implica uma compreensão da realidade humana por ela mesma, por obscura que seja esta compreensão. 'No ser desse existente, ele se relaciona ele próprio com seu ser.' É que, de fato, a compreensão não é uma qualidade vinda de fora à realidade humana, é sua própria maneira de existir. Assim, a realidade humana que é eu assume seu próprio ser ao compreendê-lo. Essa compreensão é a minha. Portanto, sou antes de qualquer coisa um ser que compreende mais ou menos obscuramente sua realidade de homem, o que significa que me faço homem ao compreender-me como tal. Posso então me interrogar e, sobre as bases dessa interrogação, levar a cabo uma análise da 'realidade-humana', que poderá servir de fundamento a uma antropologia. Aqui tampouco, naturalmente, não se trata de introspecção, primeiro porque a introspecção só depara com o fato, depois porque minha compreensão da realidade humana é obscura e inautêntica. Ela deve ser explicitada e corrigida. Em todo caso, a hermenêutica da existência vai poder fundar uma antropologia e essa antropologia servirá de base a toda psicologia. Assim estamos na situação inversa da dos psicólogos, uma vez que partimos dessa totalidade sintética que é o homem e estabelecemos a essência do homem antes de estrear em psicologia."


SARTRE, Jean-Paul. 1905-1980. Esboço para uma teoria das emoções / Jean-Paul Sartre; tradução de Paulo Neves. - Porto Alegre: L&PM, 2008.

 

Sugestão do colega: http://recomendeumparagrafo.blogspot.com